«Jornais
e parafusos»
Artigo sobre a Imprensa que publicou, na sua qualidade de Redactor-Principal,
na edição comemorativa dos 138 anos (2.6.1992) do jornal «O Comércio do
Porto».
No limiar do século XXI, entre a abrupta
queda do muro e o lento erguer dos Estados Unidos da Europa, face a face
com a paulatina destruição do planeta, o Ocidente tenta sacudir a sua
perplexidade e descortinar no avassalador caos informativo todo um novo
quadro de referências que lhe permita descodificar os sinais de mudança
e entender cabalmente o fenómeno da terceira vaga.
As velhas ideologias - morais, políticas,
económicas, sociais, culturais e mesmo científicas -, se bem que ainda
funcionem como esqueleto estruturante do raciocínio, doutra forma insustentável
na sua leveza demasiado abstracta, já não permitem aquela visão coerentemente
integradora que inflama os homens de acção.
Chegou pois, de novo, o tempo dos filósofos
e dos poetas, que hão-de dar às massas desorientadas ou tão-só ignorantes,
e especialmente aos obreiros, os primeiros, a explicação ontológica e
fenomenológica indispensável; os segundos, a convicção intuitiva dos arquétipos
em que o futuro se sustentará.
Meio-filósofo e meio-poeta, verdadeiro especialista
em ideias gerais, o jornalista, quando de facto o é, tem nesta viragem
um papel fundamental a desempenhar. Quando os vendedores e os usurários
tendem a ocupar o espaço vazio deixado pelas velhas certezas, e as pessoas
se deixam adormecer na sedução dos líderes providenciais e no corporativismo
dos políticos profissionais, é ao verdadeiro Jornalismo que cabe denunciar
os vendilhões, acordar as opiniões, desmistificar as seduções, combater
o poder pelo poder, enfim, transmitir o cerne das questões que realmente
interessam.
A maioridade de um povo não se avalia tanto
pelo respectivo rendimento per capita, mas mais pela capacidade de crítica
e pela afirmação consequente de ideias, vontades e projectos que consiga
ter. E se é a opinião pública que faz a Comunicação Social a que tem direito,
o inverso também é verdadeiro: uma Comunicação Social esclarecida e esclarecedora
tanto há-de dar na dura indiferença até que a fura.
Mas as leis da Economia não são de molde
a motivar os soit disant empresários jornalísticos a insistir num produto
que não responda, com o menor custo possível, aos mais imediatistas desejos
do mercado. Os aprendizes do negócio fácil fogem do investimento como
o diabo da cruz, mesmo quando lhes escasseiam os lucros da chafarica.
Felizmente os jornais não são parafusos;
e a contabilidade na Comunicação Social não tem seguras nem uma acéfala
maleabilidade da matéria-prima nem uma fiel automatização do torno ou
do molde... E é justamente ao jornalista, enquanto profissional técnica
e deontologicamente responsável, que sobretudo cabe fazer distinguir um
órgão de Comunicação Social de uma qualquer fábrica de parafusos.
Os poderes democráticos instituídos consagraram
na Constituição e na lei ordinária o dever que o jornalista tem de garantir
a independência e a idoneidade do seu trabalho, dando-lhes para tanto
uma inalienável e intransmissível responsabilidade própria. Como um hospital
não controla ou não deve controlar a responsabilidade própria que o médico
tem para com o seu doente, assim também um jornal não pode comandar a
responsabilidade que o jornalista tem para com o leitor.
É hoje, em boa verdade, difícil e ingrato
desafinar no coro das conveniências harmónicas: não gosta o maestro, detestam
os canoros e aparentemente não aprecia o público. Mas já Balzac amaldiçoava
os que, apesar da aparente inutilidade da sua missão, desistem de bradar
no deserto...