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 Manuel Abranches de Soveral

 

 

«Jornais e parafusos»


Artigo sobre a Imprensa que publicou, na sua qualidade de Redactor-Principal, na edição comemorativa dos 138 anos (2.6.1992) do jornal «O Comércio do Porto».

No limiar do século XXI, entre a abrupta queda do muro e o lento erguer dos Estados Unidos da Europa, face a face com a paulatina destruição do planeta, o Ocidente tenta sacudir a sua perplexidade e descortinar no avassalador caos informativo todo um novo quadro de referências que lhe permita descodificar os sinais de mudança e entender cabalmente o fenómeno da terceira vaga.

As velhas ideologias - morais, políticas, económicas, sociais, culturais e mesmo científicas -, se bem que ainda funcionem como esqueleto estruturante do raciocínio, doutra forma insustentável na sua leveza demasiado abstracta, já não permitem aquela visão coerentemente integradora que inflama os homens de acção.

Chegou pois, de novo, o tempo dos filósofos e dos poetas, que hão-de dar às massas desorientadas ou tão-só ignorantes, e especialmente aos obreiros, os primeiros, a explicação ontológica e fenomenológica indispensável; os segundos, a convicção intuitiva dos arquétipos em que o futuro se sustentará.

Meio-filósofo e meio-poeta, verdadeiro especialista em ideias gerais, o jornalista, quando de facto o é, tem nesta viragem um papel fundamental a desempenhar. Quando os vendedores e os usurários tendem a ocupar o espaço vazio deixado pelas velhas certezas, e as pessoas se deixam adormecer na sedução dos líderes providenciais e no corporativismo dos políticos profissionais, é ao verdadeiro Jornalismo que cabe denunciar os vendilhões, acordar as opiniões, desmistificar as seduções, combater o poder pelo poder, enfim, transmitir o cerne das questões que realmente interessam.

A maioridade de um povo não se avalia tanto pelo respectivo rendimento per capita, mas mais pela capacidade de crítica e pela afirmação consequente de ideias, vontades e projectos que consiga ter. E se é a opinião pública que faz a Comunicação Social a que tem direito, o inverso também é verdadeiro: uma Comunicação Social esclarecida e esclarecedora tanto há-de dar na dura indiferença até que a fura.

Mas as leis da Economia não são de molde a motivar os soit disant empresários jornalísticos a insistir num produto que não responda, com o menor custo possível, aos mais imediatistas desejos do mercado. Os aprendizes do negócio fácil fogem do investimento como o diabo da cruz, mesmo quando lhes escasseiam os lucros da chafarica.

Felizmente os jornais não são parafusos; e a contabilidade na Comunicação Social não tem seguras nem uma acéfala maleabilidade da matéria-prima nem uma fiel automatização do torno ou do molde... E é justamente ao jornalista, enquanto profissional técnica e deontologicamente responsável, que sobretudo cabe fazer distinguir um órgão de Comunicação Social de uma qualquer fábrica de parafusos.

Os poderes democráticos instituídos consagraram na Constituição e na lei ordinária o dever que o jornalista tem de garantir a independência e a idoneidade do seu trabalho, dando-lhes para tanto uma inalienável e intransmissível responsabilidade própria. Como um hospital não controla ou não deve controlar a responsabilidade própria que o médico tem para com o seu doente, assim também um jornal não pode comandar a responsabilidade que o jornalista tem para com o leitor.

É hoje, em boa verdade, difícil e ingrato desafinar no coro das conveniências harmónicas: não gosta o maestro, detestam os canoros e aparentemente não aprecia o público. Mas já Balzac amaldiçoava os que, apesar da aparente inutilidade da sua missão, desistem de bradar no deserto...

 

 
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