«Missão
impossível?»
Artigo sobre a Imprensa que publicou, na sua qualidade de Editor de Nacional/Política,
na edição especial dos 134 anos (2.6.1988) de «O Comércio do Porto», jornal
então dirigido por Manuel Teixeira.
A questão que trata de saber se são os leitores
que merecem os jornais que têm ou se são os jornais que merecem os leitores
que têm, sempre fascinou o meu displicente sentido do rigor. É que, ao
contrário do que se passa com a falsa disputa genética entre o ovo e a
galinha, o círculo-vicioso da Imprensa portuguesa está hoje acima de qualquer
suspeita quanto à insustentável leveza do seu absurdo ontológico.
Publico-me, lodo existo? A maioria da nossa
Imprensa, de facto, assentou arraiais nesta vaquinha cartesiano-heideggeriana
e borrifou-se para as corrosivas interrogações que Camus, se soubesse
de semelhante, não deixaria certamente de levantar.
Mas se assim é - pergunto eu - como explicar
a suma importância de que parece revestir-se o exacto ângulo em que o
facalhão penetrou, insensível como a mão assassina, o peito da vítima
descorçoada? Ou, menos dramaticamente, a hora precisa em que o ministro
cortou, comovido, a fita da inauguração saloia?
Naquelas páginas cercadas pela bênção desculpante
da pala sectorial - onde o Princípio de Peter costuma fazer a mais fulgurante
carreira, a uma bola se chama sempre esférico e os autarcas dão amiúde
pela designação de edil -, este tipo de preocupações são com certeza rotuladas
de escusadas, quando não esconsas. Mas numa secção como o «Nacional»,
que tenho a honrosa desdita de chefiar em comissão de serviço, já não
é possível passar por elas como cão por vinha vindimada.
A bem dizer, a posição claramente liderante
que é atribuída ao «Nacional» obriga-o ao esforço de levantar os olhos
para o horizonte tremido do trote que se estende nesse futuro que qualquer
um tem sempre meio redentor, meio tenebroso.
E que vislumbramos nós, débeis gajeiros
da nau catrineta que a vontade do Manuel Teixeira amarra ao leme? A pergunta
é boa. Quanto à resposta, infelizmente não passa disso mesmo: dum vislumbre,
duma impressão mais convicta do que invicta, sem patrocínios nem prebendas,
porventura esquecida das favas contadas com que os nossos empresários
costumam argamassar o risco do investimento.
Mas, ainda assim, duma aposta optimista,
já que empenhada em ultrapassar, pela inspiração criadora, a proverbial
impossibilidade de fazer omeletas sem ovos... Porque na Imprensa, um pouco
como na quântica, as coisas têm a mesmíssima hipótese de serem ou não
serem, e só verdadeiramente se afirmam no momento em que são lidas.
Daí a tal relação, central, entre o leitor
e o jornal. Os factos, só por si, são puro terrorismo. Ou, se quisermos
ser mais explícitos, ininteligíveis enquanto não integrados numa visão
coerentemente sustentada na recepção que cada leitor deles possa fazer.
Uma «notícia», portanto, não só não existe
enquanto não for lida como só será aquilo que cada leitor nela entender.
E se for possível dois leitores entenderem-na de forma diametralmente
oposta, ela terá, simultaneamente, esse dois sentidos inversos. Ou seja:
deixa de ser comunicação e passa a ser espectáculo. O absurdo, o paradoxal,
pesa assim na Imprensa, como em tudo afinal, com a força que eternamente
esmaga o destino de Sísifo.
Ao jornalista cabe, neste contexto, a ingrata
e difícil obrigação de ser puro sem ser ingénuo e de ser inteligente sem
ser intelectual. Porque ele, que tem por missão criar a realidade, não
pode nunca esquecer-se de quão facilmente se descamba ora para o terrorismo
dos factos ora para o absurdo da multi-significação ou equivocidade da
mensagem.
Eis, pois, o caminho estreito que quotidianamente
temos aqui de percorrer, vereda quase impossível que serpenteia entre
os abruptos e caóticos precipícios da imensidão dos factos e da diversidade
dos leitores. Como é possível, a cada um de nós, a coragem para cada dia
nos abalançarmos à jornada, é coisa que ainda não entendi bem, mas suspeito
ficar a dever-se, por um lado, à inconsciência algo dormente de quem se
vê obrigado a fazer muito mais do que aquilo que, em rigor, poderia fazer
bem feito; por outro, à íntima convicção de que os leitores ou não nos
percebem ou não nos levam muito a sério.
Será, pois, que são os leitores que têm
os jornais que merecem? Ante a impossibilidade de concluir, sem margem
para dúvidas, se é assim ou não, eu opto, num mero acto de vontade, pelo
inverso: são os jornais que têm os leitores que merecem. E, firmado nesta
opção, é possível ir mais longe e concluir que cabe aos jornais escolher
os seus leitores. Como? Escrevendo para eles, de forma a que por eles
sejam escolhidos.
A diferença é formalmente tão subtil que
se dilui à mínima distracção. Mas a verdade é que, sendo o Jornalismo
a ponte estreita que se estabelece entre os factos e os leitores, cabe
aos jornais a iniciativa de os seleccionar a ambos. Só que esta selecção
não é, em qualquer dos casos, quantitativa mas sim qualitativa.
Quer isto dizer que o Jornalismo tem de
actuar de forma duplamente integrada: ao nível dos factos, descodificando-os,
interpretando-os e relacionando-os; ao nível dos leitores, construindo
uma mensagem unívoca pelo menos para o seu arquileitor.
Missão impossível? É aqui que entra a tal
inspiração criadora. Mesmo sem os meios humanos e técnicos minimamente
necessários, aqui no «Nacional» julgamos possível fazer alguma
coisa. Talvez como os gregos, que entortaram as colunas do Pártenon para
que elas parecessem direitas. Talvez como Einstein, que entortou o tempo
e o espaço para nos explicar a sua aparente linearidade. Na convicção,
como quer que seja, de que a simplicidade é o grande segredo do Universo.