«Quotidiano
duma cavalgadura»
Pequeno conto publicado na rubrica «Gavetas do Tempo» do jornal «O Comércio
do Porto»
Ao ritmo cadenciado do seu trote manhoso,
o macho e as moscas percorriam de cor a soalheira estival e poeirenta
do caminho de casa.
Era árdua a subida; mas mais além, onde
os cascos ferrados batem duro nas lajes lavadas do carreiro, já a sombra
entrecortada da ramada nova desenharia, na descida suave, mil visões conhecidas
e com que ansiedade relembradas desde os alvores desse dia de faina.
Depois, o recorte esperado do portão erguido
em granito; a velha pia musgosa e a água renovada da sua sede habitual;
o desalbardar não longe do feno e da tenra cana verde de milho; a penumbra
em silêncio do curral fechado às moscas e às andanças estafadas da sua
sorte de cavalgadura.
Era o sossego, enfim.
Ah, mas como ele detestava esse galo emplumado
e inútil do seu despertar amargo! Tão-logo, a escorrerem por entre as
fendas indiscretas do granito e da masseira, os raios oblíquos do sol
levante anunciariam a madrugada em fios de poeira doirada a cortar por
todo o lado a penumbra da sua intimidade suada na noite afinal mal dormida.
E já a corda ensebada era cabresto do quotidiano.
A albarda vinha depois, bem aparelhada e cintada à pança cheia para o
dia todo. De novo a pia; o portão erguido; as lajes em que a ramada nova
pintava o claro-escuro da sua fantasia; a soalheira, o pó e as moscas.
A mesma seca! Porém, no horizonte que tinha,
baixo e tremido do trote, pode ainda vislumbrar o azafama que ia no terreiro
grande das aldeias, com tendas já a erguerem-se, aqui e ali, sob o pulso
vigoroso dos feirantes. E uma certeza plena de paz inundou-lhe os músculos
distendidos ao peso da carga enfardada: amanha seria domingo! |