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 Manuel Abranches de Soveral

 

 

«Quotidiano duma cavalgadura»


Pequeno conto publicado na rubrica «Gavetas do Tempo» do jornal «O Comércio do Porto»

Ao ritmo cadenciado do seu trote manhoso, o macho e as moscas percorriam de cor a soalheira estival e poeirenta do caminho de casa.

Era árdua a subida; mas mais além, onde os cascos ferrados batem duro nas lajes lavadas do carreiro, já a sombra entrecortada da ramada nova desenharia, na descida suave, mil visões conhecidas e com que ansiedade relembradas desde os alvores desse dia de faina.

Depois, o recorte esperado do portão erguido em granito; a velha pia musgosa e a água renovada da sua sede habitual; o desalbardar não longe do feno e da tenra cana verde de milho; a penumbra em silêncio do curral fechado às moscas e às andanças estafadas da sua sorte de cavalgadura.

Era o sossego, enfim.

Ah, mas como ele detestava esse galo emplumado e inútil do seu despertar amargo! Tão-logo, a escorrerem por entre as fendas indiscretas do granito e da masseira, os raios oblíquos do sol levante anunciariam a madrugada em fios de poeira doirada a cortar por todo o lado a penumbra da sua intimidade suada na noite afinal mal dormida.

E já a corda ensebada era cabresto do quotidiano. A albarda vinha depois, bem aparelhada e cintada à pança cheia para o dia todo. De novo a pia; o portão erguido; as lajes em que a ramada nova pintava o claro-escuro da sua fantasia; a soalheira, o pó e as moscas.

A mesma seca! Porém, no horizonte que tinha, baixo e tremido do trote, pode ainda vislumbrar o azafama que ia no terreiro grande das aldeias, com tendas já a erguerem-se, aqui e ali, sob o pulso vigoroso dos feirantes. E uma certeza plena de paz inundou-lhe os músculos distendidos ao peso da carga enfardada: amanha seria domingo!

 
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