«Quiproquó»
Pequeno
conto publicado na rubrica «Gavetas do Tempo» do jornal «O Comércio
do Porto»
O dragão, já só vagamente fumarento, expirava
nos fundos insalubres da sua própria toca, cansado de viver. Até as pulgas,
que costumava coçar com meiga benevolência, o tinham miseravelmente abandonado.
Fazia Abril na Primavera dos seus quarenta
e oito anos. Uma idade provecta para quem, como ele, detestava banhar-se
na fonte da eterna juventude e sujeitar-se a operações plásticas em clínicas
inglesas.
E o seu desalento sentia-se no ar. Aqui
e ali, nas muralhas devastadas da cidadela vagamente segura, alguns narizes
assomavam inopinadamente por entre as ameias protectoras.
O perigo parecia menor. Rapidamente, os
cavaleiros olearam as enferrujadas armaduras; hastearam os escassos pendões
e as fartas caldeiras; arrancaram os mansos cavalos ao doce remanso dos
estábulos. E irromperam de tudo quanto fosse lado, não sem deixarem bem
acautelada a eventualidade de uma retirada repentina, a toque de caixa.
Mas o dragão moribundo, conquanto não fizesse
já perigar qualquer donzela honesta, era ainda demais para os afoitos
cavaleiros.
Amor com amor se paga - lembrou-se então
um, que tinha fama de ser mais esperto do que os outros. E a estratégia
foi entabular relações privilegiadas com um outro dragão, ainda não completamente
senil, que tinha toca no estrangeiro e era tido como muito amável. Com
o auxílio desta segunda besta, a vitória foi um mimo e o arraial dos festejos
uma coisa mirabolante, nunca vista.
Só que o dragão amável era simultaneamente
ambicioso e internacionalista. Conclusão: aproveitou a velha toca do parente
vencido e estabeleceu nela filial para um sobrinho, que sempre sonhara,
desde pequenino, vir a ser um dia dragão privativo num reino de pacóvios...