|
«Diálogo
em bronze»
Pequeno conto publicado na rubrica «Gavetas do Tempo» do jornal «O Comércio
do Porto»
O seu olhar distante e fixo no recorte vigoroso
da Sé, como que em expectativa de acometimento guerreiro que o bronze
esverdeado moldara sem remissão numa pose altiva e sobranceira à cidade
conquistada, desde sempre teve o condão de me prender, quando por vezes
dou por mim a calcorrear sem destino esse Porto antigo, íngreme e agreste,
num deambular esquecido do tempo que me urge. E, porventura, guiado por
qualquer nostálgica e premente apetência da cidade ideal que em vão procuro
descobrir na rota da muralha.
O espaço vital que vos talhei é vosso!
A quem, senão a vós, há-de afinal competir saber vivê-lo?!
Dom Vimarano Peres permanecia esfinge montada
em cavalo tão quieto como os lábios cortados na barba metálica do seu
silêncio obrigatório. Contudo, a voz soara nitidamente; e pela forma como
ecoou no barroco das arcadas que Nazoni justapôs à catedral ali mandada
erguer por Dom Muninho o Gasco, era indubitavelmente à estátua
que se tinha de apontar a procedência do som.
Guardei-me, calado, a olhar fixamente esse
avô quase inicial, que o bronze e o granito conjugavam no presente em
palavras impossíveis.
Dali, o azul do horizonte visual, onde o
casario amontoado recortava à cidade a beleza de uma silhueta caprichosa,
dava-nos apenas a perspectiva optimista da andorinha. Mas faria também
primavera no leito poluído, asfixiante e ensurdecedor, das ruas lançadas
em correia louca nas direcções todas dos cubículos numerados que cada
um de nós, à mingua de solar, é obrigado a chamar, apenas, lar?
Volvi à estátua. Nada! Por certo me atraiçoara
a imaginação habitada pela força de toda a sorte de fantasmas que costumo
recriar nas águas-furtadas da minha imaginação. E descia já Vandoma, esse
nome da Senhora da Reconquista que a feira, noutras horas, usa agora polvilhar
de coisas do arco da velha, quando a voz, pousada e metálica, ecoou de
novo nas arcadas da Sé.
- Na verdade, a quem senão a vós?!... |