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 Manuel Abranches de Soveral

 

 

 

 

«Diálogo em bronze»


Pequeno conto publicado na rubrica «Gavetas do Tempo» do jornal «O Comércio do Porto»

O seu olhar distante e fixo no recorte vigoroso da Sé, como que em expectativa de acometimento guerreiro que o bronze esverdeado moldara sem remissão numa pose altiva e sobranceira à cidade conquistada, desde sempre teve o condão de me prender, quando por vezes dou por mim a calcorrear sem destino esse Porto antigo, íngreme e agreste, num deambular esquecido do tempo que me urge. E, porventura, guiado por qualquer nostálgica e premente apetência da cidade ideal que em vão procuro descobrir na rota da muralha.

O espaço vital que vos talhei é vosso! A quem, senão a vós, há-de afinal competir saber vivê-lo?!

Dom Vimarano Peres permanecia esfinge montada em cavalo tão quieto como os lábios cortados na barba metálica do seu silêncio obrigatório. Contudo, a voz soara nitidamente; e pela forma como ecoou no barroco das arcadas que Nazoni justapôs à catedral ali mandada erguer por Dom Muninho o Gasco, era indubitavelmente à estátua que se tinha de apontar a procedência do som.

Guardei-me, calado, a olhar fixamente esse avô quase inicial, que o bronze e o granito conjugavam no presente em palavras impossíveis.

Dali, o azul do horizonte visual, onde o casario amontoado recortava à cidade a beleza de uma silhueta caprichosa, dava-nos apenas a perspectiva optimista da andorinha. Mas faria também primavera no leito poluído, asfixiante e ensurdecedor, das ruas lançadas em correia louca nas direcções todas dos cubículos numerados que cada um de nós, à mingua de solar, é obrigado a chamar, apenas, lar?

Volvi à estátua. Nada! Por certo me atraiçoara a imaginação habitada pela força de toda a sorte de fantasmas que costumo recriar nas águas-furtadas da minha imaginação. E descia já Vandoma, esse nome da Senhora da Reconquista que a feira, noutras horas, usa agora polvilhar de coisas do arco da velha, quando a voz, pousada e metálica, ecoou de novo nas arcadas da Sé.

- Na verdade, a quem senão a vós?!...

 
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